Santos & Silvas




Na colonização europeia de territórios da África e das Américas, dentre as diversas formas de violência e dominação, o apagamento de memórias foi uma prática constantemente empregada. Os laços físicos e espirituais que conectavam os nativos e africanos com suas matrizes familiares foram desfeitos brutalmente no Brasil. Além das separações de famílias, clãs e etnias, a mudança do nome original atuava como estratégia de despersonalização do indivíduo, o inserindo como subordinado na sociedade colonial. Por meio do batismo ou “herança” de sobrenome dos seus senhores buscava-se deslocar essa gente de sua origem, negando as ancestralidades que residiam na memória de cada um. A diáspora africana e os encontros culturais entre nativos possibilitaram subverter, ao seu modo e dentro de suas possibilidades, imposições forçosas e violentas. A atuação nas brechas sociais através de sabedorias transgressoras, não ocidentais e não coloniais, possibilitou a instauração e a permanência de saberes e fazeres que remetem ao passado originário, que a colonialidade tentou e permanece tentando apagar.

Silva e Santos são os sobrenomes mais populares no Brasil, onde cerca de 87% da população brasileira possui sobrenomes de origem ibérica, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Silva pode ter origem relacionada à selva (em latim) - aqueles que viviam em matas ou regiões interioranas. Por sua vez, Santos tem origem direta à religião católica e foi muito empregado por cristãos-novos no intuito de driblar as perseguições religiosas que sofriam. As relações de parentesco e fraternidade construídas no Brasil compuseram um importante vínculo para a formação de memórias, visões de mundo e identidades dos subalternizados, e também a adoção de sobrenomes comuns e populares constituiu uma estratégia de subsistir.

A partir destas reflexões é apresentada a proposta de ocupação da galeria de artes visuais do Espaço Cultural Correios Niterói com a exposição individual de Thiago Modesto. Thiago é carioca, designer e gravurista, oriundo de família migrante de Santo Antônio de Pádua, noroeste do estado do Rio de Janeiro, estabelecido há mais de três décadas na zona oeste da cidade.

Composta por xilogravuras, serigrafias, instalações e suportes variados, a exposição traz a produção do artista nos últimos anos, focada no olhar sobre comunidades originárias e imaginadas que se mesclam às memórias familiares e ancestrais.


Santos faz referência às devoções populares, seres míticos e ao sagrado presente no cotidiano brasileiro. São percursos de vida que os tornam santidades, ancestrais cultuados dentro de seus universos particulares. Silvas remete aos viventes de um território rural/urbano e contemporâneo, povos que compõem a amálgama de diversos Brasis que batalham diariamente contra o empreendimento colonial, ainda vigente de inúmeras maneiras. Uma menção às memórias perdidas e (re)lembradas presentes na oralidade.

A exposição é dividida em três sessões/séries: Sertão Carioca, Reminiscências e Pindoranes. Sertão Carioca é uma série que foi desenvolvida a partir da vivência do artista no Quilombo Cafundá Astrogilda, território quilombola em Vargem Grande, Rio de Janeiro, denominado subjetivamente de Sertão Carioca. Reminiscências é inspirada em histórias e recordações fragmentadas presentes no núcleo familiar do artista. Pindoranes ilustra personagens femininas, também refletidas em “causos” familiares, e em mulheres que acompanham sua trajetória.

Em instalações, retratos, cenas cotidianas ou fantásticas, Thiago Modesto celebra sua busca do sentido da experiência da vida através da arte, alinhada com o sentido de sociedade intrínseco no conceito de ancestralidade. Assim, Thiago Modesto apresenta nesta exposição inédita, sua visão de mundo influenciado por cosmovisões de encruzilhadas e reverencia os saberes ancestrais.


Bernardo Marques-Baptista